“Encontrei uma espécie de coágulo. Não sei se era um pedaço de papelão ou mofo. Algo com a consistência de ameixa. O suco que deveria ser branco estava esverdeado. Havia vários pontos mofados dentro da caixa”Descreveu a auditora de trânsito Luciana Borges Marinho, moradora de Águas Claras (DF), ao contar do corpo estranho que encontrou na caixa do suco de soja que havia tomado.
Primeiro, sentiu nojo, raiva e frustração.
Depois, dor no estômago. O marido, que tinha tomado um copo inteiro, ficou o
dia todo com azia. Ela fotografou, divulgou na internet, informou à vigilância
sanitária e denunciou o caso para emissoras de TV, mas nenhuma deu importância.
Até pensou em mover uma ação. Foi a um laboratório tentar fazer análise
microbiológica, mas acabou desistindo quando soube que precisava passar por
consulta médica e realizar exame de sangue para confirmar que tinha consumido o
produto. Parou por aí.
Não é à toa que consumidores preocupados com a
saúde prefiram alimentos naturais a industrializados. Situações como a que
Luciana Marinho vivenciou têm se repetido com frequência. E os riscos são
grandes. Se um alimento contaminado for ingerido, pode causar sérios prejuízos
à saúde, inclusive a morte. Ainda que nada disso ocorra, parte da doutrina
jurídica e da jurisprudência dos tribunais brasileiros considera que o
sentimento de repugnância do consumidor ao se deparar com algo estranho no
alimento que pretendia consumir, por si só, gera outro tipo de dano: o moral.
Dano extrapatrimonial
“Verificada a ocorrência de defeito no produto,
inafastável é o dever do fornecedor de reparar também o dano extrapatrimonial
causado ao consumidor, fruto da exposição de sua saúde e segurança a risco
concreto”, disse a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do recurso especial de uma empresa de
bebidas (REsp 1.454.255). Os ministros do colegiado confirmaram a decisão da
ministra e reconheceram a responsabilidade da fornecedora pela sujeira
encontrada no interior da garrafa de água mineral.
O artigo 12, parágrafo 1º, inciso II, do Código
de Defesa do Consumidor (CDC) dispõe que o produto é defeituoso quando não
oferece a segurança que dele legitimamente se espera – levando-se em
consideração o uso e os riscos razoavelmente esperados.
Com base nisso, Andrighi afirmou que o corpo
estranho encontrado na garrafa de água mineral tornou o produto defeituoso, “na
medida em que, na hipotética deglutição do corpo estranho, não seria pequena a
probabilidade de ocorrência de dano” à saúde física ou à integridade psíquica
do consumidor.
Quantificação do dano
Diante de tantas demandas que chegam ao Poder
Judiciário, o STJ tem se posicionado de forma favorável ao consumidor. Quanto ao valor da indenização,
embora não existam critérios fixos para a quantificação do dano moral, o
tribunal tem afirmado que a reparação deve ser suficiente para desestimular o
ofensor a repetir a falta, sem, contudo, permitir o enriquecimento ilícito do
consumidor.
Essa foi a posição adotada pela Terceira Turma
em novembro de 2013. O ministro Sidnei Beneti (já aposentado) manteve a
condenação da Indústria de Torrone Nossa Senhora de Montevérgine ao pagamento
de R$ 10 mil por dano moral a
consumidora que adquiriu e até comeu parte de uma barra de cereais contendo
larvas e ovos de inseto (AREsp 409.048). Em outra ocasião, Beneti considerou adequado o valor correspondente
a 50 salários mínimos para
reparar o dano moral sofrido por criança que feriu a boca ao comer linguiça em
que havia um pedaço de metal afiado (AREsp 107.948).
De acordo com o ministro, para ponderar o valor
da reparação do dano moral, devem ser consideradas as circunstâncias do fato,
as condições do ofensor e do ofendido, a forma e o tipo de ofensa e as suas
repercussões no mundo interior e exterior da vítima. Apesar disso, “ainda que,
objetivamente, os casos sejam bastante assemelhados, no aspecto subjetivo são
sempre diferentes”, comentou Beneti.
Responsabilidade civil
A lei consumerista impõe ao fornecedor o dever
de evitar que a saúde e a segurança do consumidor sejam colocadas em risco. A
ministra Nancy Andrighi explica que o CDC tutela o dano ainda em sua
potencialidade, buscando prevenir sua ocorrência efetiva. Tanto é que o artigo
8º se refere a riscos, e não a danos.
Caso esse dever não seja cumprido, o fornecedor
tem a obrigação de reparar o dano causado por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos (artigo 12 do CDC). Essa reparação não se
limita ao aspecto material, ou seja, à devolução do valor pago pelo produto.
O jurista Sergio Cavalieri Filho afirma que o
dano moral não mais se restringe a dor, tristeza e sofrimento. Para ele, essa
proteção jurídica se estende a todos os bens personalíssimos (Programa de
Responsabilidade Civil). No mesmo sentido, a jurisprudência do STJ tem admitido
a compensação do dano moral independentemente da demonstração de dor e
sofrimento.
O ministro Marco Buzzi, da Quarta Turma,
defende que esses sentimentos são consequência, e não causa determinante da
ofensa a algum dos aspectos da personalidade. Segundo ele, “a configuração de
dano moral deve ser concebida, em linhas gerais, como a violação a quaisquer
bens personalíssimos que irradiam da dignidade da pessoa humana, não se
afigurando relevante, para tal, a demonstração de dor ou sofrimento”
(voto-vista no REsp 1.376.449).
RELEMBRE
ALGUNS CASOS:
- Coca-Cola
Em março de 2014, a Terceira Turma manteve a
condenação da Coca-Cola Indústrias Ltda. ao pagamento de 20 salários mínimos de
indenização a consumidora que encontrou um corpo estranho – descrito por ela
como algo semelhante a uma lagartixa – dentro da garrafa de refrigerante, sem,
contudo, ter consumido o produto. A perícia apontou que se tratava de um tipo
de bolor.
A maioria do colegiado entendeu que mesmo não
tendo ocorrido a abertura da embalagem e a ingestão do produto, a existência do
corpo estranho colocou em risco a saúde e integridade física ou psíquica da
consumidora (REsp 1.424.304).
O entendimento, contudo, não está pacificado no
âmbito do Tribunal da Cidadania. A Quarta Turma, em decisão unânime, já se
manifestou de forma contrária em hipótese na qual não houve a ingestão do produto.
No julgamento do REsp 1.131.139, o ministro Luis Felipe Salomão disse que a
simples aquisição de um pacote de bolachas do tipo água e sal contendo objeto
metálico que o torna impróprio para o consumo, sem que tenha havido a ingestão
do produto, não acarreta dano moral que justifique indenização.
- Extrato de tomate
Uma dona de casa cozinhava para sua família
quando, ao utilizar um extrato de tomate, encontrou na lata um preservativo
masculino enrolado. Indignada, levou o produto para análise na universidade
local e entrou em contato com o fabricante, que se recusou a arcar com os
prejuízos morais sofridos por ela (REsp 1.317.611).
No recurso especial, a Unilever alegou a
nulidade do processo devido ao indeferimento do pedido de prova pericial. Com
essa prova, a empresa pretendia demonstrar que o preservativo não poderia ter
sido inserido na fábrica e que, por essa razão, o dano experimentado pelo
consumidor decorreria de fato próprio ou de fato de terceiro.
Contudo, a ministra relatora verificou que a
prova tida como imprescindível foi indeferida de maneira fundamentada pelo TJRS,
para o qual a possibilidade de que o preservativo estivesse no depósito dos
ingredientes usados na fabricação do produto não poderia ser afastada por meio
da análise do processo mecânico de produção.
Quanto ao valor da indenização, os ministros
consideraram que não havia necessidade de revisão. Para tanto, tomaram como
base precedente no qual o dano moral foi fixado em R$ 15 mil para hipótese em
que o consumidor encontrou uma barata em lata de leite condensado. Trata-se do
REsp 1.239.060.
“O abalo causado a uma dona de casa que
encontra, num extrato de tomate que já utilizou para consumo de sua família, um
preservativo aberto é muito grande. É perfeitamente natural que, diante da
indignação sentida numa situação como essas, desperte-se no cidadão o desejo de
obter justiça”, comentou a ministra Nancy Andrighi.
- Salgadinho
O fornecedor ou fabricante que causa dano ao
consumidor só se exime da responsabilidade quando consegue provar que não
colocou o produto no mercado, ou que, embora tenha colocado, este não possui
defeito que o torne impróprio para uso ou, ainda, que a culpa é exclusiva do
consumidor ou de terceiro (parágrafo 3º do artigo 12 do CDC). É dele o ônus da
prova, e não do consumidor.
“A previsão legal é sutil, mas de extrema
importância na prática processual”, ressaltou o ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, da Terceira Turma, quando do julgamento do REsp 1.220.998.
No caso analisado, a empresa Pepsico do Brasil
foi condenada a pagar dez salários mínimos de indenização por danos morais a
consumidor que fraturou dois dentes porque mordeu uma peça metálica que estava
na embalagem de salgadinho da Elma Chips.
O Tribunal de Justiça de São Paulo não afastou
a responsabilidade objetiva da fabricante pelo acidente, já que ela não
conseguiu demonstrar as excludentes do parágrafo 3º do artigo 12 do CDC. No
STJ, a Pepsico buscou a inversão do ônus da prova e defendeu que o autor da
ação não teria demonstrado o fato constitutivo de seu direito.
“A peculiaridade da responsabilidade pelo fato
do produto (artigo 12), assim como ocorre na responsabilidade pelo fato do
serviço (artigo 14), é a previsão, no microssistema do CDC, de regra específica
acerca da distribuição do ônus da prova da inexistência de defeito”, comentou
Sanseverino. Com base nisso, a Turma negou provimento ao recurso especial.
Em julgamento semelhante, a Quarta Turma
manteve a condenação da empresa Pan Produtos Alimentícios ao pagamento de R$ 20
mil por danos morais a consumidor que encontrou três pedaços de borracha em
barra de chocolate parcialmente consumida. “A jurisprudência desta corte é
firme no sentido de reconhecer a possibilidade de lesão à honra subjetiva
decorrente da aquisição de alimentos e bebidas contendo corpo estranho”,
afirmou o relator, ministro Antonio Carlos Ferreira (AREsp 38.957).
- Prazo de validade
Ainda que as relações comerciais tenham o
enfoque e a disciplina determinadas pelo Código de Defesa do Consumidor, isso
não afasta o requisito da existência de nexo de causalidade para a configuração
da responsabilidade civil. Com base nesse entendimento, a Terceira Turma negou
provimento ao recurso especial de consumidores que notaram a presença de ovos e
larvas de inseto em chocolate que já estava com a data de validade vencida no
momento do consumo (REsp 1.252.307).
Após ser citada, a empresa Kraft Foods Brasil
defendeu que a contaminação não ocorreu em suas instalações industriais, porque
o produto teria sido consumido fora do prazo de validade. Com isso, segundo
ela, rompeu-se o nexo causal.
O ministro Massami Uyeda (já aposentado), que
apresentou o voto vencedor, mencionou que o prazo de validade é resultado de
estudos técnicos, químicos e biológicos, para possibilitar ao mercado
consumidor a segurança de que, naquele prazo, o produto estará em plenas
condições de consumo.
“O fabricante, ao estabelecer prazo de validade
para consumo de seus produtos, atende aos comandos imperativos do próprio
Código de Defesa do Consumidor, especificamente, acerca da segurança do
produto, bem como da saúde dos consumidores”, ressaltou o ministro.
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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